14/07/2011
Túmulo de indiscrições
Eu só sei falar coisas sem sentido, moço, e não sei nada sobre sentir porque desaprendi desde que vi tudo escorrer de mim. E me perdoe, eu sou só um pedaço de pele e osso porque até a carne perdi na minha falta insolente de sentimentos, até a cor perdi por causa dos meus tantos preconceitos conservados desde que mudei de vida. Deixei caído por aí meu credo, não tenho religião, não possuo nenhuma crença, me sufoco só de imaginar um Deus que possa ter amor, moço, um amor por milhões de pessoas que cruzam por mim todo dia sem me levar nenhum pedacinho.
Não choro nunca, moço, soluços me doem nos ouvidos, desprezo rimas tristes e desprezo em escala gigantesca os sofrimentos da carne. Sou pequena em si, moço, odeio as formas grandes de tudo, odeio amor gigantesco, odeio caridade, odeio pena, e as construções me causam ódio. Tudo o que eu falo e faço de bom, quebro com a destreza e concentração de um lutador daqueles fortes e grandes e odiáveis, moço, quebro porque estou quebrada em tantos cacos que são impossíveis de pegar sem se cortar também.
Só o que não quebro mais é a cara, moço, minha cara branca e curvada em remorsos de quem já se arriscou por um bem maior. E “bens maiores” me doem, moço, perdi também no meu caminho o entendimento do que isso significa. Como é que alguém se oferece para a sangria pura e simplesmente porque acredita em salvação? O que é salvação, moço, se não a nossa perda pelo que nos obrigamos a acreditar? Não acredite, moço. Duvide de tudo. Duvide de mim, de Deus, desse céu, da existência real desse instante. Duvide de você e das suas verdades mais profundas. Espete o dedo na ferida, moço, chore rios até murchar o suficiente para que ninguém mais consiga te convencer de coisa alguma, e me permita te odiar profundamente pela tua tristeza até que vires seco, assim como eu, e que se acabe tua vida de dissabores.
Enxergue o mundo com os meus olhos, moço. Apague esse dia da tua memória e apague a ti mesmo como se encontra, assim tão bonito e sorridente e feliz em teu carro esportivo e emprego e salário alto para me perguntar o que me leva a esta vida.
Sou mulher, cigana, mentirosa. Sou um túmulo de indiscrições. Sou a ironia na sua forma mais ridiculamente bela. Sou meu próprio Deus e decido meu próprio caminho, sou a frieza e sou a lágrima mais salgada. Desculpe, moço, mas sou tua angústia de não ter construído nada e essa tua percepção que te esclarece agora mesmo de que nada que tu faças, em nenhum momento da tua vida, irá tapar esse buraco entra a tua razão de ser e a dor de existir. Sou o que, a princípio, parece a mais tola mentira e se torna na mais amarga verdade. Sou o caminho sem volta porque em mim não existem rodeios, só curvas mal delineadas. Mas não tenhas medo, moço, você não precisa ser como eu se ignorar seus desamores e levantar a cabeça a cada queda. Só que eu, moço, eu nunca mais precisei cair.
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Nossa... Dá-me angústia só de ler. Sinceramente, uma pessoa como esta não vive, padece aos poucos na sua morte. Uma pessoa infeliz, fruto de uma vida infeliz, uma vida desequilibrada. Sou a favor do equilíbrio. Onde há mau, deve haver, também, o bem. Onde há remorsos, que haja esperanças. Onde houver sentimentos feridos, que haja a alegria. Uma vida sem equilíbrio é feita apenas de mesmisses, e as mesmisses tornam a vida sem descrição, tornam a vida sem vivência, cega, muda, escura...
ResponderExcluirMuito legal este texto. Interpretei-o como uma resposta ao post "(Re)inventando". Cada dia me surpreendo mais com textos que leio neste blog, pois a cada dia estão mais profundos, mais árduos, mais sensíveis. Parabéns.
É uma possibilidade Mateus. huehue, obrigada
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