03/07/2011

O imensurável


Tinha um sorriso tímido pendurado na boca, os olhos miúdos grudados no céu, as mãos finas sobre uma das pernas. Suponho que estava a pensar em um dos garotos da rua, embora não me atreva a fazer essas palavras produzirem som. Não é da minha conta, mas não posso deixar de notar seus dedinhos titubeando a marchinha que estavam a tocar na rua e pensar se esse ritmo realmente a agrada. Os olhinhos se moviam, fitavam o chão ou os sapatinhos abarrotados - com os topezinhos a enfeitar o preto liso já tão gasto e quase dono da tonalidade cinza. Não me dirigiu o olhar nenhuma vez, como se não fosse eu digno de seu tempo. Eu bem que sofria, atrás da janela emoldurada, em baixo nos seus planos de casamento. No último lugar da lista. Eu, dos mais lentos da classe, o último a somar os números, meramente interessado em unir as letras. Tão somente interessado nela e nos tons rosados das bochechinhas, que a mãe apertava com gosto. Fora eu, outros tantos com nome na lista de chamada, ansiados por sua atenção. Mergulhados no oceano de outros tantos a estranhar o corpo, a ver a mente dando mil rodeios, os olhos descontrolados entrando na saia das garotas, a falta de conversa com os pais sobre qualquer um desses assuntos entocados na jaula do oculto. Os pêlos crescentes, o corpo igualmente; os dentes entortando, a boca aprendendo a sussurrar indecências ou gritar deboches mal comportados. Ela, do alto da sua superioridade infantil, me olhando como do seu troninho feito de madeira e palha, a me mostrar com o cabelo dourado liso que meus sonhos eram tão irreais quanto irredutíveis. Expulsar um deles de mim seria o mesmo que picar minha infância e trancar numa caixa de recordações. Entre recordar ou sonhar, escolhia seguir imóvel a fitar seus olhinhos, ver ali faíscas do sol sendo refletidas naquelas janelinhas vidradas da minha paixão não percebida. Eu, já sem vergonha de trancafiar meus pensamentos mais errantes. Eu, cheio de medo da sua insensibilidade mascarada nas janelas dos meus sonhos.

2 comentários:

  1. Poxa... Muito bom! Não sei se o personagem do texto sentia amor ou paixão, mas o amor é o mais puro dos sentimentos, duradouro, eterno. A paixão também é linda, às vezes mais árdua que o amor, mas é mortal. Meus parabéns pelo texto.

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  2. Adorei o jogo de imagens que vc faz aqui. Uma pessoa perdida em sonhos e pensamentos. O sentimento de incerteza. Gostei bastante.

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