18/06/2012

Anti-herói

Tem uma das mãos pousada em um copo de whisky, outra segurando um cigarro, parecendo um artista francês. O frio predomina fora dos cobertores da casa que não tem, o hotel é pouco acolhedor e empoeirado. Serei inútil só mais uma vez, pensa, semelhante às tardes com cafés fortes, os olhos intensamente quentes, negros, amargos, como todo o resto. A bebida e a fumaça descem pela garganta azeda, passando pelos dentes amarelados, os lábios cortados pelo vento incessante. Atrás da janela, a noite já caiu sob as casas, os prédios são contornados pela luz da lua. Ele, com os cabelos despenteados, a trilha sonora insuportavelmente popular ao fundo, parece um falido escritor de romances nunca lidos. Seu bar preferido fechou, as bebidas não são como antes, querem implantar um desses sistemas, lei seca, proibição à drogas, essas medidas que nunca funcionam. Nada de Kafka, Bukowski, Roberto Carlos, nada de Hilda, Florbela ou Bandeira: todos velhos, caquéticos, ou esquecidos, mortos. Geniais. Uma marchinha antiga de carnaval preenche o recinto, o dono do bar aumenta o volume, ele levanta os olhos da mesa bamba para a saia da garçonete, que graciosamente enche o copo. A noite escorre entre os dedos magros. O peito é preenchido pelo branco dos cabelos, que já passaram dos cem fios. As rugas, os vincos, o dissabor, a azia constante, os livros insatisfatórios que enchem suas linhas de rodeios e o incentivam a permanecer na cama, tudo fazendo círculos em sua mente enquanto o álcool faz efeito. Ao seu lado, uma moça o observa atentamente, e depois põe-se a escrever poemas em seu pequeno caderno, sem ponderar que assim, como ele, acaba-se a maioria dos poetas. Ele tem vontade de dizer o que é que você faz aqui? Vá estudar, que essas matérias preenchem inutilmente as grades curriculares e não são usadas no fim pra nada, mas é assim mesmo, vá fazer amigos e rir e desejar ardentemente ser bem sucedida, rica, burra. Leia jornais, deseje a morte de todos esses que preenchem as colunas policiais, a explosão dos presídios, que a burguesia não pague para viverem sem perspectiva esses vadios. Creia na imprensa, na opinião pública, que não existem exilados políticos, pobres sedentos, gente infeliz. Escove os dentes, seja bela e encantadoramente alegre e que riam também teus olhos claros. Espere ter guardada em ti essa inocência que se perderá na hora certa, e não assim precocemente como os menininhos que não tiveram essa tua chance de estudar, ganhar dinheiro, rir assim leve de programas da TV. Esqueça esses caras intelectualmente superiores que têm sempre mais que trinta anos, nenhum emprego, nenhum juízo, uma faca em baixo do travesseiro com a qual sem sucesso já lanharam os pulsos, mas uma hora vai que. Pare de ler tragédias gregas de escritores tristes, modernistas, ultrarromânticos, bando de vagabundos viados desocupados. Muita gente deseja tua sensibilidade, eles dirão, mas é mentira. Daqui vinte anos, você estará na porta de algum cara insensível ou simplesmente normal, um tanto desequilibrada, bêbada, a pele manchada, as mãos trêmulas, recitando poemas às três da manhã. Mas, sem dizer nada disso, ele simplesmente ri, empina o copo, e levanta para sair à rua como um condenado que aceita sem recorrer à sua pena.

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