30/10/2011

Promessa cumprida




Agora você sabe que quando eu disse que ia embora, foi pra valer. Você viu, a gente viu, eu nunca mais voltei, e, pra ser sincera, provei até pra mim mesma porque jurava uma recaída qualquer graças à rotina. Fiquei quieta e parada e provei pro mundo, não só pra mim e pra você, que eu sabia me controlar, respirar, contar nos dedos até o desespero evaporar. Toda vez que quis gritar foi pra te provocar, pra me decepcionar, tenho duas por dentro, você disse, eu agora concordo. Uma parte minha me fere e toda vez que a lembro tenho arrepios, e o pior é que só você sabe provocá-la com suas reclamações descompensadas e defeitos apontados na cara de todo mundo. Com sua sinceridade de dois gumes que te faz o mais legal dos caras e o inimigo que qualquer um evita ter. Culpa sua? Nenhuma. É só seu jeito de descontar no mundo suas frustrações de quem tem tudo a troco de nada e quer mais e me quer tão pouco. Estraçalhei nos últimos dias uma parte minha que só existe por tua causa e nem mais te vi, mas quando te vejo aperto o nó bem firme. Dei dois nós cegos que só afrouxam nas noites de sábado que eu passo em casa, quase inexistentes, no meu ódio que é também loucura que é também amor. Quem sabe foi até minha mente que inventou esse pedaço meu pra me ocupar o tempo, pra te chatear, pra acabar com a gente antes de você resolver ir embora. Quem sabe foi só uma forma de me defender das suas eternas partidas que começaram antes da gente começar, no primeiro dia eu já sentia saudade, aprendi a ser vazia até quando preenchida. Amor é fácil de sentir, o que essa parte minha provou é que só se sabe que é pra valer quando o ódio aperta. Quase sufoca. Inventei casos e mil amores mas ódio só tenho por você. E hoje nem te sinto em nada, não está mais no café amargo e não existe você em nenhum filme preto e branco meloso de atriz linda com bunda enorme. Ah, você adorava os meus romances. E até o meu único terror que era te ver na companhia de mulheres já acabou, se enterrou, agora posso falar sobre tudo isso porque tudo é tão sem gosto quanto meu café da manhã que com você era sempre briga. E às vezes o sem gosto me mata, vou confessar. Só não quero mais ser perigosa, cortar suas roupas e jogar você pela escada, te ameaçar com faca da cozinha, nada disso, tudo perfeitamente no lugar. Eu dentro de mim, sem nenhuma surpresa, sem nenhum outro eu. Mas de vez em quando... Só às vezes quero eu de volta. Só às vezes quero você. E é sempre tão de vez em quando que eu nem noto, me pego divagando e sentindo saudade... Ou nem isso, você sabe, saudade e nostalgia tem suas diferenças, nostalgia é o que se sabe inviável mas mesmo assim se sente. E saudade vem sempre carregada de esperança, carregada de ódio, mas ódio não existe, né? Ódio já foi. Controlo tudo, enquanto você controla o olhar na expressão séria, nunca desce do meu rosto. Fico contando os pontinhos brilhantes do fundo do teu olho, é bem normal, sem tremores nem neuroses, com o auto-controle que eu não conhecia. Nunca soube mentir e sempre fui de falar de mais, sempre me entregando, comprometendo tudo em troca de tão pouco. Sempre juntando histórias soltas e trazendo pro mesmo contexto, te entediando com minhas filosofias de vida nunca verdadeiramente aplicáveis. Essas histórias estão fora de moda, você ri sempre que eu digo assim, como se as coisas precisassem estar inclusas na moda pra existir. Não precisam, já notei. Você me pedia pra parar de contar histórias da infância, essas que começavam do fim, assim como se eu nunca pudesse pegar nada pela raiz. Agora te pego pela raiz e já te cortei, arranquei fora porque não vai mais nascer, já morreu, sumiu de vista. Eu sumi também. Porque eu prometi e agora tenho palavra, nunca tive, te ligava no meio da noite mesmo quando jurava não te acordar, te deixar trabalhar sossegado, te deixar... No fim, eu deixei mesmo.

29/10/2011

Caçador de ideias


Tenho feito tudo errado. Mas sigo me justificando, porque sei que não é por mal, é por querer dizer tanta coisa e no fim não dizer nada. É ver os pensamentos dançando todos, como em uma grande festa, como num carnaval, levantar o braço de sorriso esperançoso no rosto e fechar a mão bem pertinho de um pedaço que nunca se toca ou se aprisiona. Desse modo, eles nunca me satisfazem e são tão ralos que não valem à pena nem pra tapar meus silêncios que deveriam se justificar pela paisagem interna. Ela tem sido tão óbvia, mas às vezes com nuvens tênues do insensato. Não posso reclamar, às vezes tenho a sorte de receber uma pequena iluminação de loucura. Os loucos são infinitamente mais espertos, até porque têm da inteligência que não se demonstra, até porque são julgados loucos, mais loucos do que aqueles que crêem-se superiores e sensatos.
Eu insisto, de qualquer modo, porque preciso cuspir uma parcela do que penso pra não viver atordoado. Não se pode dizer que não tento, junto memórias e tudo que observo e cortejo a inspiração. Que muitas vezes se nega a comparecer. Mas sei bem, que de dentro de uma caixa sai qualquer coisa, caixa escura onde não se identifica onde começa um pedaço e termina outro. E insisto em descer ainda mais o braço e seguir na busca. Pode haver lá dentro uma lâmina, uma pluma, um excremento, uma flor morta, um punhado de urtiga, um punhado de dor. Tudo complementa a experiência. A inspiração pode ser devastadora assim como irritante e incômoda, mas se não desse modo, como chegar ao produto final?
A ideia às vezes vem fragmentada, às vezes chega solta, desprendida de um contexto. Às vezes a ideia machuca e eu a descarto. Às vezes eu a desprezo e então a culpa é minha, porque dela se pode esperar qualquer coisa, e de mim só se pode querer o aproveitamento. Mas descarto porque também me pertence a covardia. E sou, então, aquele que procura sem reclamar cansaço, sem reclamar eventuais machucados ou dores latejantes em feridas antigas que são resgatadas nesse processo, mas que quando percebe a exposição logo esconde e diz ser outro. Porque pra ser si próprio é preciso mais coragem que pra interpretar, enfrentar platéias, vaias, críticas. Difícil mesmo é quando não consta a máscara no uniforme de trabalho.
Pra ser de verdade deve haver um pouco de contradição, confusão e medo. Pra ser feliz também é preciso ser triste, mesmo que não seja possível ser sempre o desejado. Já pra ser sempre igual só se precisa de ensaio, costume, rotina. Pra ter uma ideia tem que se ter coragem, mesmo que no fim negação, mesmo que vergonha. Mesmo que frustração pela expectativa exagerada, pelo sono perdido, pela noite virada. Mesmo que no fim não valha nada, quem sabe sirva de experiência, seja só mais uma curva da estrada.

15/10/2011

Um mandamento e mil questionamentos

Em desejo não se manda, veja que tolice, “não cobices a mulher do próximo”, mas quem é que comanda as próprias cobiças? Saibas que se fosse assim seríamos todos muito puros, pode ter certeza, todos muito certos. Padres não deixariam de serem padres pra casar com mulheres, nenhum padre exploraria de crianças como se sabe que às vezes acontece. Adolescente não teria filho, olha que maravilha, não existiriam pedófilos ou transgressores e muitas leis nem existiram. Mas, infelizmente – ou talvez não, porque perceba que sem graça seríamos todos – somos impuros e imorais e mesmo assim julgamos os erros alheios que são cometidos graças à suas mentes nem sempre limpas – ou talvez nunca. Apontamos com nossos dedos tortos as caras dos criminosos, mas será que com um pouco mais de coragem não seríamos nós atrás das grades? A verdade é que os medrosos não cometem crimes e, de fichas limpas, riem-se da desgraça dos que nasceram sem pudor, quando estes se saem mal transgredindo leis. Soei um tanto sensacionalista, mas foi só por pensar que todos nós temos uma tendência ao crime. E no quanto nos descriminamos e reprimimos por todos os desejos que são considerados sujos, por nossas práticas taxadas ilícitas, por nossas vergonhas, pelo nosso caráter que julgamos inquestionável, mas será? Ah, o quanto julgamos os drogados, bêbados, péssimos pais de famílias, mas quem não teve ou tem, lá no fundo, um desejo de também decepcionar essa sociedade que nos exige e nos arranca nossas conquistas como se faz com doce em mão de criança? Sociedade que nos tira e nunca devolve pais, mães, irmãos, que entraram e não saem mais da morte por um tiro que estava perdido, pela arma na mão da pessoa errada, pela polícia que foi feita pra proteger e tantas vezes machuca. Na verdade, todos estamos mergulhados nessa lama, uns mais, outros menos. Todos compartilhamos da indignação que pouco se difere do ódio de ser um fator a mais, só mais uma fruta nesse cesto de maçãs podres. Desculpem-me os religiosos, perdoe-me Moisés, mas é um grande erro esse de reprimir nossos desejos, além de ficarmos o tempo todo sufocando nossa má conduta pra ser alguém melhor. Pelo menos que possamos cobiçar à vontade, querer, desejar, mesmo que escondido, mesmo sem confessar, as coisas alheias e as coisas erradas desse mundo.

11/10/2011


Andando de vagar, percorrendo as ruas como se percorre as páginas frágeis de um livro antigo, pra não se fragmentar a folha, arrastava os olhos pela noite sem lua. Nos prédios e nas casas, as luzes eram fachos integrantes da paisagem urbana. Como quis fugir dali. Como quis voltar pra cidade dos pais, todos conhecidos, todos aptos uns aos outros. Mas é preciso sair, dizem. Ele nunca disse, mas acreditava. Quem fica em baixo da asa da mãe ou é medroso ou é viado. Mas tinha assim quase que um medo, quase que uma sina, como se diz assim: uma certeza. Uma certeza de que à partir daquele dia também ele fazia parte. Parte daquele cenário, das luzes das casas, do olho negro invisível pra si lá em cima. Andou mais de vagar ainda. Podiam agora passar e tirar uma foto, pintar um quadro, ele também era paisagem, podia ser cartão postal. Os olhos correram por seus pés e agora seus passos – ele percebeu com a mesma certeza com cheiro de roupa guardada – pertenciam a uma rota que chamamos tão descuidadamente de destino. E o passo podia se acelerar, quem sabe na próxima esquina? Uma mulher, um amor, talvez ou homem. Porque não um homem? Agora era o coração descompassado que não conhecia mais, já tinha tanto tempo... Tinha medo do que iam falar. Por que é que falam? Por que é que julgam? Ele suspira porque amor é sempre amor, mas até a isso dão nomes, tem quem ame do jeito não convencional. Puxa um cigarro e houve as buzinas e nos olhos e nos postes vê o aceitável: ninguém entende. Não há revolta nenhuma, é só um cara andando pela rua com medo de sentir. Todo dia a mesma rota, se bem que às vezes se altera um pouco, nenhuma festa, já havia um bom tempo, nenhum amigo. Vinha correndo tanto, hoje queria conhecer um lugar diferente, mas não tinha com quem, só com os próprios pés e a certeza de finalmente existir naquele lugar naquele instante. Aumenta o passo. Ninguém sabe o que se passa, ninguém. Às vezes se julga conhecer uma pessoa e ter certeza de que ela pensa assim, afinal ela disse, mas pode ser uma invenção ou sabemos aonde ela vai e supomos que ela gosta dessa vida, mas pode ser só por pressão. Ninguém conhece ninguém e ele quer tanto conhecer. Anda mais rápido. Todos sabem ser distantes mesmo estando perto, sabia? É quase um dom. E quer tanto estar perto e ser de verdade também pra alguém e não só pra um lugar qualquer. Agora ele corre.

06/10/2011

Eu ou Ela


Prometo que a partir de agora vou ser silêncios. O que é isso, o que é aquilo? Não pergunto. Estou aprendendo, hein, vou rebuscar menos com as palavras, ser “natural” controlando tudo. Clara. Distante, até. Vou aprender ainda mais, viu, vou ser mais sociável, é assim que se diz, “sociável”, como se fosse um pouco de bicho quem tem medo. E medo do quê?

Ah, tenho além de tudo que me aprofundar menos, ser dessas que pouco revelam. Sabe quem é? Sabe quem é aquela que anda na rua refletindo riqueza, mas não se sabe se é rica, aliás, não se sabe nada. Ela é só mistério. Ela aparenta mania com limpeza, organização, mas quem sabe... Ninguém sabe. Qualquer um daria um dedo pra ler as revistas que ela tem, conhecer a sua casa, o seu quarto... Mas ela some e aparece e some de novo só pra enlouquecer. E quem é que não gosta de um pouco de loucura boa. Quem é que não gosta dela. Vou ser igualzinha, mas será que ela permite igualdade? Sei eu. Ela não permite nada a ninguém. É interessante ao máximo e isso aborrece e instiga, fico louca mesmo gostando de caras. E os caras enlouquecem. Com ela, é claro.

A questão é que ela sabe causar interesse. Quando ela chega todo mundo olha, e ela ri baixo e bebe pouco, e todos querem ser baixeza e sobriedade pra ter um pouco da riqueza dela. Ela, ninguém sabe rica do quê. Os assuntos começam mornos e terminam quentes, as rodas cheias de homens lembrando as pernas dela. Ela é todos os assuntos, até pra mim que comecei falando da minha inquietude e acabei falando do silêncio atraente dela. E o que mais? Atrai nela a indiferença, claro, maior de todos os atrativos a pessoas. Atrai nela o olhar sempre agitado, que nunca pousa assim como seu corpo magro e bem-feito. E amamos nós todos as coisas provocativas. Ela chama atenção, todos querem ela, todas querem ser iguais... Mas ser assim, sempre incógnita, não deve dar solidão? Tenho que aprender também a gostar de invernos, vou pôr na lista, porque dentro dela deve dar tanto frio.

Lembrança Farroupilha


No caminho por onde passas
Deixas rastros que só eu sei
O quanto é sozinho em andanças
Nestas terras que tanto pisei.

Das mulheres, campos e gostos
Carregas lembranças por dentro do pala
E pela vida coleciona desgostos
De quem não abaixa a cabeça ou se cala.

Nos teus olhos já trazes culpa
Que outrora não carregavas
Desejas correr pelas curvas
Ou morrer no meio da estrada.

Todos os dias sabe de amigos
Que por este pampa caem sem vida
Descobre o sucesso de inimigos
Que o nosso Rio Grande abriga.

Na cuia do mate tens água quente
Pois no ar o frio se propaga
Nos olhos tens fúria ardente
De quem não pode largar a espada.