19/04/2011

roteiro


Era um garoto de boca pequena, nariz um tanto grande e uns olhos de vidro, transparentes como água. Com certa convivência, tornava-se bonito, graças aos olhos transbordantes e o abraço quente, mas a aparência o traía: Hector era feio. Sorria em dentes tortos, oferecendo aos outros o conforto nos seus braços, e, por vezes, acordava no meio da noite com a necessidade inflamada de mostrar consideração a quem amava, temendo no outro dia ser tarde demais. Gostava de uma garota ou outra, até que uma lhe foi tida como especial: chamava-se Laura. Não entendia o que tinha ela que tanto o atraía, mesmo que, à noite, tivesse vontade de gritar ao bairro inteiro ou falar bem baixinho no seu ouvido, o quanto queria vez ou outra, passar os dedos pelos cachos rebeldes do seu cabelo e ouvir a voz dela que engrossava, como suas pernas e os fios que antes eram loiros e agora estavam mais pra cor opaca da cabeceira da cama onde ele deitava todo dia e pedia que ela o ouvisse. Laura não ouvia. Talvez ele entendesse ao longo do tempo, o que agora não tinha trégua: amar lhe gastava as noites, vê-la lhe gastava os dias. E Laura, por tão pouco entender, só podia ver em Hector sua feiúra, suas pernas tortas e roupas doadas pela caridade. A beleza dela, ao mesmo tempo que não lhe deixava faltarem atributos a serem elogiados, os quais vinham crescendo ao longo do verão, alimentaram o amor tolo de Hector anos à fio, pela inocência – e a burrice, disse a si mesmo anos depois – da infância à dentro. O problema maior daquilo que Hector aprendeu a denominar burrice, é que quando se vai, ficam os pesos e o amargo de ter de tomar decisões. Ele pedia que Laura voltasse, mesmo que nunca o tivesse pertencido, e que fosse como era nos sonhos que ele não tinha mais; mas, certas coisas, mesmo que possíveis quando duas pessoas estão vivas e livres, não podem se realizar pela simples ordem das coisas. Não se é possível amar quem por tanto tempo não conseguiu lhe ver realmente, fora da casca, dentro de si. Portanto, mesmo que me pareça possível escrever “e se aceitaram como eram e foram felizes para sempre”, sem mais delongas, pra acabar com a agonia de Hector, alimentar com realidade os sonhos dele com as mãos compridas, as covinhas no queixo, o suor na nuca graças aos cabelos pesados pertencentes à Laura, a lógica dos fatos não me permite. Amor tem lógica sim. Hector não esperará para sempre e Laura não amaria alguém como ele, não de verdade, não com afinco, muito menos com entrega. Tem o coração mesquinho, as pernas de um metro lhe dando a magreza de uma modelo. O rosto, com ar de superior, a mentalidade que jamais admitiria um romance sem propósitos ou razão de ser. Mas, de um modo ou de outro, não há tempo também ao meu entendimento: é o que é, e o tempo arrancou da vida dos dois o que poderia ter sido. Hector crescera, aos poucos, deixando a burrice pra trás e conhecendo Catarina, Monica, Verônica, Luiza ou Luzia, tantas outras parecidas com Laura e tantas outras que lhe eram o oposto. Porém, elas passaram a se interessar por Hector, pelos crescentes tapando as faces, vergonha descobrindo o rosto em que as feições viraram marcantes. O viam na rodoviária, praça, calçadas, igreja ou arredores, a passos lentos e olhos não mais tão claros, nem com a cabeça dentro de livros procurando explicações, mas sim por fora, procurando por vida, por moças. Se bem que, ainda hoje, apostava Laura, dentro do quarto dele, entre os papéis de parede verde-água com janelas fechadas e lâmpada acesa, ainda haviam os livros espalhados pelo chão e a desordem habitual. Ela, com curiosidade, observava porque agora não tinha mais direito de ver, e o que não se pode ter nem por decreto - os tesouros mais inalcançáveis - tornam-se, de certo modo, desejáveis. Ainda temos um casal, a ordem errada, a falta de correspondência. O que nos resta ainda é a miopia resultante dos não-entendimentos: enquanto sobram amores externos, fazem falta as aproximações; Enquanto ainda houver o descaso com o interno, vamos todos falar línguas diferentes. Nós, estrangeiros de nós mesmos.

5 comentários:

  1. tua escrita me toca;fico feliz por isto e agradeço por sua presença em meu blog, e aguardo teu retorno outras vezes mais;

    ResponderExcluir
  2. É nessa prisão de amores impossíveis que os olhos se tornam uma fábrica de desejos e se descobrem vez ou outra ali. Límpidos. Feito luz, mas inteiramente cegos. A beleza pode ser majestosa e a feiura misturada ao abraço quente pode ser doce e inquieta aos olhos de quem de fora observa. Há quem diga que procuramos o amor dentro de nós.
    Há quem diga que ele nunca existiu!

    Adorei tudo, cada letra, cada frase. Poesia pura!

    Um beijo

    ResponderExcluir
  3. Simplesmente perfeito... Todos os seus textos são aliás... Estava retribuindo a visita, e AMEI seu blog, cada texto, cada frase. PARABÉNS !

    http://soentreelas.blogspot.com

    ResponderExcluir
  4. Melancólico. Tesouros? Aproximações difíceis. A angustiante condição humana. Os ingênuos são os mais felizes. Bem escrito. A literatura em si também é míope. Longe. Longe. Longe.

    ResponderExcluir
  5. Me pergunto se seria humano, essa coisa que sentimos por quem nos ama quase como suas proprias vidas, ou quem sabe até mais

    talvez... seja mesmo humano
    Quando penso nisso me enojo da massa populacional.
    Você escreve bem, parabens.

    ResponderExcluir